Foto de Daniel Rocha
«Num país essencialmente pobre, um grande projecto
agro-florestal começa com atropelos ambientais e sociais, provocando uma onda
de contestação.
São apenas 50 quilómetros
entre São Tomé e Ribeira Peixe, mas o caminho faz-se devagar. A estrada é
sinuosa, acomoda-se ao contorno da costa e vence a orografia em curvas e
declives, com o mar à esquerda e a floresta verdejante à direita.
Alguns minutos além do rio Iô
Grande surgem as primeiras palmeiras. Estão alinhadas em fileiras, entre as
quais foi semeada uma leguminosa para fertilizar o solo. O conjunto estende-se
num tapete geométrico até ao limite onde a floresta foi cortada. Ao fundo,
enquadrado por esta paisagem dual, vê-se o Cão Grande, o curioso dedo vulcânico
que se eleva a 663 metros de altitude.
O cenário é tudo menos um
simples cartão postal de São Tomé e Príncipe. Aquelas palmeiras fazem parte de
uma exploração agro-florestal que é o tema do momento no país. Implica derrubar
áreas de floresta para produzir óleo de palma e está a semear a discórdia entre
cidadãos, organizações não-governamentais, empresas e administração central.
Não é uma história que se
encaixe numa divisão simplista entre defensores e destruidores da natureza. São
Tomé e Príncipe é um país pobre, com um PIBper capita de 1100 euros por ano, 6% do português. As
roças de cacau e de café que alimentaram a economia colonial estão quase todas
falidas. Nas cidades há poucos empregos.
O país precisa de
investimento. Mas a população não está disposta a aceitá-lo a qualquer custo. O
trinómio idílico do desenvolvimento sustentável, onde a economia, o ambiente e
o bem-estar social andam de mãos dadas, não está aqui a funcionar.
Produzir óleo de palma não é
uma novidade no país. No anos 1980, o Governo criou a Empresa de Óleos Vegetais
(Emolve) e plantou cerca de 600 hectares de palmeira-andim (Elaeis
guineensis) no Sul de São Tomé. O projecto durou pouco e estava moribundo
quando, há cinco anos, o Governo começou a negociar uma parceria para o
ressuscitar. Surgiu então a Agripalma, com 12% de capital do Estado são-tomense
e 88% da STP Invest, uma sociedade belga cujos responsáveis estão ligados a
empresas da área das renováveis.
A ideia é replantar e ampliar
os palmares para quase 5000 hectares e construir uma fábrica. O investimento
equivale a 29 milhões de euros e a produção esperada é de 20 mil toneladas de
óleo de palma por ano, em 2017. Parte destina-se ao consumo local e parte será
exportada.
Corrida a África
O projecto surge num momento em que muitos investidores estão de olho na
exploração do óleo de palma em África. Actualmente, 85% da produção mundial vem
da Indonésia e da Malásia, com destino sobretudo à China, Índia e União
Europeia. Com a expectativa de duplicação do consumo até 2020 - como óleo
comestível e para a produção de biodiesel -, outras áreas de cultivo estão a
ser procuradas nos trópicos.
Num relatório de Dezembro de
2011, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente já alertava para a
destruição de florestas tropicais devido "à rápida expansão da monocultura
do óleo de palma". Conflitos ambientais e sociais, em especial pela posse
da terra, têm sido reportados em países africanos como a Nigéria, Camarões,
Gana, República Democrática do Congo, Costa do Marfim.
Em São Tomé é Príncipe, estão
a repetir-se, desde que os contratos com a Agripalma foram assinados em 2009.
"A partir deste momento, as coisas começaram a correr mal", queixa-se
Bastien Loloum, organização não-governamental Marapa (Mar, Ambiente e Pesca
Artesanal). O estudo de impacto ambiental, diz Loloum, é deficiente, não teve
consulta pública e foi difícil de obter. "Estava na Bélgica, em inglês, e
a tradução é má", afirma.
Em documentos do projecto, há
várias referências a compromissos de responsabilidade ambiental. A própria
empresa que executará o projecto - a Socfinco, detentora de 100 mil hectares de
palmares em África - é fundadora da Roundtable
Sustainable Palm Oil, criada pelos produtores em 2004 para garantir que as
explorações seguem os preceitos do desenvolvimento sustentável.
No terreno, porém, os exemplos
contrários multiplicam-se quando se passa a cidade de Porto Alegre, no extremo
sul de São Tomé, e se segue por uma estrada irregular de terra batida. Depois
de um pequeno percurso a pé, entre fetos e coqueiros, Bastien Loloum mostra uma
área pejada de árvores abatidas. Ali passa um curso de água que mal se
vislumbra. "Deviam ter guardado uma faixa de 40 metros a partir da
ribeira", lamenta Loloum, que coordena projectos da Marapa naquela região.
Mais à frente, o caminho passa
por troços difíceis, com pequenas pontes periclitantes, até desaguar numa área
com amplas faixas de floresta abertas para as palmeiras. Há ribeiras entulhadas
com troncos e acentuados declives recém-despidos. A vulnerabilidade à erosão é
evidente.
Foi nesta área que a população
se rebelou contra o avanço das máquinas. O projecto previa, na região de Porto
Alegre, o envolvimento dos agricultores locais - num modelo distinto das
plantações industriais em Ribeira Peixe. Mas os moradores dizem que os bulldozers avançaram sem aviso nem cerimónia. "O
problema é a maneira como estão a agir na comunidade", afirma Fidel
Sanches, presidente da Associação Comunitária de Porto Alegre.
Reforma falhada
Em grande medida, o que foi derrubado correspondia às ruínas de uma reforma
fundiária falhada, que teve início nos anos 1990. Ex-trabalhadores das roças
receberam lotes de terreno do Estado. Mas, por falta de apoio, de formação ou
de iniciativa, muitos nunca cultivaram a sério os seus talhões. Hoje
simplesmente retiram da terra o que a terra lhes dá - algum cacau ou café
remanescente, bananas, cocos, fruta-pão. Das próprias palmeiras extrai-se a
seiva para fazer o vinho de palma. Grandes árvores transformam-se em madeira, o
material de construção mais popular na ilha. "A terra não era cultivada,
mas havia a nossa madeira que estávamos a proteger", justifica Fidel
Sanches. "Derrubaram e destruíram", acrescenta.
O sangue ferveu numa manhã de
Maio passado. De catanas em punho, a população impediu o avanço das máquinas. A
Agripalma suspendeu as operações e agora vêem-se no local apenas alguns
trabalhadores a seccionarem grandes árvores já abatidas.
Num país onde a falta de
emprego é um problema, a perspectiva de trabalho no projecto Agripalma não
entusiasma a todos. "São trabalhadores extras. Não têm regalias, segurança
social, se ficam doentes ninguém lhes paga", diz Adelino dos Prazeres,
outro morador de Porto Alegre.
O conflito social à volta do
projecto não é o único. As plantações estão a tomar o lugar da floresta, com
efeitos ainda mal estudados. O resumo do estudo de impacte ambiental faz uma
descrição muito sumária da fauna e nula da flora. Os impactos sobre a paisagem
e a biodiversidade estão resumidos em três parágrafos curtos. Um deles diz:
"A biodiversidade será preservada como uma prioridade".
São Tomé e Príncipe tem
animais e plantas únicos, que não existem em mais lugar nenhum. A sua avifauna,
por exemplo, inclui espécies criticamente ameaçadas de extinção, como a
galinhola (Bostrychia bocagei), o picanço (Lanius newtoni) e o
anjolô (Neospiza concolor). "A grande questão é que se desconhecem
quais são as áreas vitais para estas espécies", alerta Nuno Barros, da
Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). "Não havendo estudos,
pode-se estar a estragar coisas que nem sequer conhecemos", diz Barros.
Providência cautelar
Organizações como a SPEA somaram as suas preocupações à dos moradores e de
outros sectores da sociedade. O resultado é um movimento cívico que tem agora
agido em conjunto. Uma petição "contra a desflorestação" foi lançada
na Internet e uma queixa formal levou o Ministério Público a entrar com uma
providência cautelar, no princípio de Julho, para suspender o projecto.
Parte da luta legal tem sido
garantida pelo envolvimento de juristas são-tomensens, como a bastonária da
Ordem dos Advogados, Celiza de Deus Lima, e o ex-procurador-geral da República,
Adelino Pereira. Este advogado tem uma concessão agrícola na zona do projecto,
mas diz que o que o move não é nenhum interesse pessoal. "Quando vi
aquilo, fiquei chocado", afirma, no seu escritório na cidade de São Tomé.
Adelino Pereira não entende
como é que o Estado entrou com os terrenos todos da Agripalma e só ficou com
12% da empresa. "É óbvio que há uma desproporção imensa". A Agripalma
pagará ao Estado uma renda anual de sete euros por hectare, o que, para o
advogado, "é uma aberração". Parte dos terrenos, embora públicos,
pode ser hipotecada para empréstimos bancários.
Os contratos prevêem uma
concessão de até 75 anos, amplas isenções fiscais e o monopólio da actividade
no país, enquanto estiverem a ser pagos os empréstimos. "Os contratos
estão impregnados de vários vícios", conclui Adelino Pereira.
"Há muita desinformação e
muito aproveitamento político", rebate o director-geral da Agricultura,
Carlos Pascoal. O projecto da Agripalma insere-se numa tentativa de atrair
investidores estrangeiros para viabilizar áreas agrícolas que não estão a ser
cultivadas. "Temos de reagir a esta economia que não existe e alargar a
nossa base produtiva de exportação", diz Carlos Pascoal.
O director-geral admite que
nem tudo tem corrido bem. "Houve alguns erros, áreas que não deveriam ser
derrubadas e foram. Mas não se pode pôr em causa um projecto por erros que são
reversíveis", afirma.Depois das queixas, o Governo criou uma comissão
permanente para fiscalizar os trabalhos, embora muitos duvidem de que haja
recursos para manter os funcionários no terreno.
Carlos Pascoal - que
representa o Estado no conselho de gerência da Agripalma - diz que as cláusulas
do contrato são o resultado de oito meses de negociações e que a renda paga
pelos terrenos está acima dos quatro euros por hectare previstos na legislação.
"Não vejo onde está o crime disto...", comenta.
Terras a menos
O Governo vê como natural a protecção do negócio por um monopólio enquanto
houver dívidas à banca, bem como a hipoteca de terrenos públicos - já que o
próprio Estado é parte interessada no projecto. Quanto à não-realização de uma
consulta pública para o estudo de impacto ambiental, prevista na lei, Carlos
Pascoal pergunta: "Qual é o projecto que teve consulta pública?"
Há uma questão ainda delicada
por resolver. Dos 4917 hectares previstos no projecto, 1272 seriam
concessionados no Príncipe. Mas o governo regional daquela ilha chumbou a ideia
e será impossível encontrar, na ilha de São Tomé, mais áreas planas para as
palmeiras. "Não temos", diz Carlos Pascoal. O contrato com a STP
Invest tem agora de ser revisto.
Na sede da Agripalma em São
Tomé, a política neste momento é a do silêncio. Ao PÚBLICO foi apenas entregue
um comunicado de 19 de Junho, assinado pelo director-geral Jan Van Eykeren. No
documento, a Agripalma diz que "desde o início do projecto tem procurado
respeitar a protecção do ambiente" e que está a seguir as recomendações
contidas num estudo complementar que mandou fazer sobre a biodiversidade.
Também afirma que não
desflorestou qualquer área dentro do Parque Natural Obô - criado em 2006 e onde
se concentra a vegetação original da ilha -, e que não está a explorar áreas
legalmente classificadas como floresta, já que as zonas concessionadas ou já
eram palmares ou tinham sido reocupadas por coqueiros e outras árvores, depois
de abertas à agricultura há muito tempo. Segundo a Agripalma, não há aves
endémicas na área concessionada.
A empresa refere que está a
empregar 800 trabalhadores, com uma folha de pagamentos mensal de 1500 milhões
de dobras (61.000 euros)."Não vamos destruir o país para dar emprego a 800
pessoas", contesta o advogado Adelino Pereira. "Não estamos contra a
Agripalma. Queremos é que as coisas sejam bem feitas", completa, repetindo
uma afirmação comum a todos os envolvidos no movimento cívico ouvidos pelo
PÚBLICO.
Os ânimos estão longe de
acalmar. Na semana passada, trabalhadores da Agripalma voltaram a ser
interpelados em Porto Alegre. E, se não houver alterações, o próximo passo da
contestação já está agendado, segundo diz Fidel Sanches: "Estamos à espera
da chuva para retomar a nossa roça".»
FONTE: Jornal Público on-line 30/7/2013
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